A dona-de-casa Marina Bianconi, 55, e a faxineira aposentada Dalira dos Santos, 51, passaram dez anos sentindo dores pelo corpo todo, sofrendo de cansaço crônico e sem conseguir dormir direito. A dor lancinante, que raramente dava trégua, impedia que realizassem tarefas cotidianas banais como lavar pratos ou dirigir.
Embora vivam em mundos completamente distintos – Marina sempre consulta médicos particulares, enquanto Dalira recorre ao sistema público de saúde –, as duas passaram por vários especialistas e tomaram doses cavalares de analgésicos até descobrirem que eram portadoras de fibromialgia, síndrome que atinge 5% da população mundial, mas que ainda é pouco familiar até mesmo para os médicos. Reconhecida como doença apenas em 1990, a fibromialgia ataca principalmente mulheres acima de 40 anos (há apenas 1 homem para cada 9 portadoras da síndrome nessa faixa etária).
Os principais sintomas são dores generalizadas pelo corpo, fadiga crônica, sono não-restaurador, formigamento nas mãos e nos pés, enxaqueca e problemas intestinais. Uma vez que ainda não existe exame laboratorial que comprove a doença, o diagnóstico tem de ser feito a partir dos sintomas relatados pelo paciente e de um exame clínico que mede a sensibilidade à dor em 18 pontos espalhados pelo corpo. “Para um paciente ser diagnosticado como fibromiálgico, ele precisa se queixar de dor difusa há mais de três meses, ter distúrbios no sono e apresentar sensibilidade em pelo menos 11 dos 18 pontos do exame clínico”, explica Jamil Natour, reumatologista da Unifesp. Como os sintomas da fibromialgia são parecidos com os de outras patologias (de tendinite e gota a lúpus, hipotireodismo e até esclerose múltipla) e como nem todos os médicos conhecem a síndrome, os pacientes podem sofrer anos até obter o diagnóstico, como aconteceu com Marina e Dalira. “Passei dez anos achando que sofria da coluna. Foi um alívio ouvir do meu médico que meu problema era fibromialgia”, diz a segunda. Os pacientes também são vítimas de preconceito, já que a inexistência de exame físico que comprove a doença faz com que muita gente desconfie da veracidade das queixas. “Uma amiga chegou a me dizer que tanto tempo de cama era coisa de artista”, reclama Marina.
Em alguns casos, ate mesmo os médicos suspeitam das queixas e classificam os fibromiálgicos como portadores de distúrbios psiquiátricos, aumentando o estigma e o sofrimento. Foi o que aconteceu com o historiador Eglon Azevedo, 53, de Tatuí (153 km de SP). “Disseram que eu tinha problemas mentais. Tive de fazer anos de análise para superar isso”, conta.
Sintomas mais comuns
1. Dor generalizada pelo corpo por, pelo menos, três meses.
2. Sono inquieto, superficial e não-restaurador (o paciente já acorda cansado).
3. Cansaço, perda de energia e diminuição da resistência a exercícios físicos.
4. Cólon irritado (diarréia alternada com prisões de ventre) e outras disfunções intestinais.
5. Formigamento e dormência nos braços, pernas, rosto e, sobretudo, nas mãos e nos pés.
6. Depressão de ansiedade crônicas.
7. Cefaléia
8. Sensação de inchaço nas articulações.
9. Rigidez muscular.
10. Desconforto diante de mudanças
Tipos de Tratamento
1. Uso de antidepressivos tricíclicos para aumentar a vida útil da serotonina. A dosagem é menor do que para pacientes com depressão e tem efeito analgésico e de relaxante muscular.
2. Uso de analgésico leve para interromper o ciclo da dor. Indicado em casos de crises agudas, tem efeito temporário.
3. Exercícios físicos de baixo impacto (sobretudo caminhadas ou natação) para aumentar a produção da endorfina e melhorar a oxigenação muscular.
4. Alongamento para aliviar a sensação de dor provocada pela contração muscular excessiva, comum em pacientes com fibromialgia.
5. Acupuntura para melhorar a qualidade do sono, estimular a produção de serotonina e endorfina e combater a depressão e a ansiedade.
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6. Redução das situações de estresse procurando fazer pequenas pausas de descanso ao longo do dia para evitar a fadiga.
7. Técnicas de relaxamento: ioga, meditação, massagem, meditação, massagem e hidroterapia (a água também ameniza a dor).
Fatores de Risco
1. Falta de condicionamento físico: o sedentarismo é apontado como o principal fator de risco. “Pouquíssimos atletas desenvolvem fibromialgia”, diz Jamil Natour, reumatologista da Unifesp.
2. Mudanças hormonais como incidência de fibromialgia são maiores em mulheres que estão entrando na menopausa: os pesquisadores suspeitam que as mudanças hormonais estejam entre os fatores que desencadeiam a doença.
3. Estresse e traumas emocionais: um acidente de carro pode estimular o aparecimento da doença.
4. Doenças infecciosas: há vários relatos de pacientes que desenvolveram fibromialgia depois de serem acometidos por doenças infecciosas.
5. Hereditariedade: filhos de fibromialgicos têm mais chances de desenvolver a doença, mas os pesquisadores não sabem se o fator de risco é o estilo de vida da família ou a genética.
A psicóloga Andréa Goldfarb acompanhou durante cinco anos um grupo de 12 mulheres portadoras de fibromialgia para fazer sua tese de doutorado e testemunhou a discriminação. “Uma das minhas pacientes chegou a contar que um médico disse que ela precisava era arranjar um marido. Como colegas e familiares olham e não vêem nada de errado, o paciente fica desacreditado”. Para vencer o preconceito e a falta de informação, os 20 portadores de fibromialgia de Tatuí encontram-se a cada 15 dias para trocar experiências sobre tratamentos que dão certo. “No começo, isso aqui parecia um concurso de dor. Hoje, nossa associação é como um clube. Sempre tem um bolinho quando tem aniversário de alguém”, brinca a bancária aposentada Eloísa Pedroso, integrante do grupo desde que foi formado, há seis meses.
Sem cura
Embora ainda não tenha sido descoberta cura para a fibromialgia, há casos em que os sintomas retrocedem quase totalmente. A prática de alongamento e de exercícios físicos de baixa intensidade, aliada ao uso de analgésicos e de antidepressivos tricíclicos, tem sido a forma de tratamento mais bem-sucedida. Acupuntura, hidroterapia e outras técnicas que combatem a ansiedade e depressão também são usadas, sobretudo em pacientes que não respondem bem ao tratamento convencional.
O motorista Elias Pompeu, 35, tomava antidepressivos e fazia exercícios. Na semana passada, começou a fazer hidroterapia e vai ser submetido a sessão de acupuntura. ”Quando tinha crises não conseguia nem segurar um copo”, conta.
“Como ainda não sabemos com precisão o que causa a fibromialgia, fica difícil pesquisar como curá-la”, explica Natour. O que os cientistas sabem de concreto é que os fibromiálgicos têem menos serotonina (neuro-transmissor que regula a sensação de dor) do que as pessoas normais e que apresentam um distúrbio que encurta a fase de sono profundo e impede que o corpo descanse, provocando fadiga e hipersensibilidade. “Falta descobrir por que isso ocorre”, diz o médico acupunturista Dr. Hong Jin Pai, do Centro da Dor do Hospital das Clínicas.
Pesquisadores da Universidade do Texas (EUA) descobriram no ano passado que os portadores de fibromialgia têem de duas a três vezes menos substância P (também envolvida no controle da dor) do que o normal. A descoberta vai ajudar a diagnosticar com mais precisão a doença. “Eles desenvolveram um kit que permite testar o nível de substância P para saber se a pessoa tem fibromialgia. Mas o exame ainda não chegou ao Brasil”, diz a fisiatria Helena Kaziyama, do HC. Já foi comprovado que mulheres na fase da menopausa, pessoas submetidas a estresse físico ou emocional e sedentários estão mais sujeitos a desenvolver a doença. Vícios de postura e até acidentes de carro também foram relacionados à doença. O historiador Eglon Azevedo acredita que o trabalho como bibliotecário por vários anos é um dos culpados por sua situação. “Ficava encurvado em uma cadeira durante horas”, lembra Azevedo que, como boa parte dos fibromiálgicos, virou um expert na doença para compensar a falta de informação que ainda atinge até os médicos.
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Estresse no trabalho
Embora saiba que cientificamente não há como afirmar o que causa a fibromialgia, o policial civil J.Z., 39, tem certeza de que, no seu caso, o estresse no trabalho detonou a doença. “Tinha cobrança demais, meu chefe era muito autoritário”, conta J., que está de licença médica e prefere não ser identificado porque teme represália do patrão. “Ele nunca entendeu o que eu sentia. Quando reclamava de dor, ele exigia que eu trabalhasse mais”. J. começou a sentir dores no pulso há três anos. O clínico-geral que o atendeu suspeitou de gota. Como os exames de ácido úrico não indicaram nenhuma alteração, a dor passou a ser atribuída à tendinite. “Me mandaram fazer ultra-som, mas também não deu nada. Á essa altura, a dor havia se espalhado pelos braços, cotovelos, ombros e pela região cervical”. Ele também não dormia bem, tinha problemas intestinais e na bexiga. Morador do interior de São Paulo, próximo da fronteira com Minas, J. peregrinou por toda a região atrás de um diagnóstico conclusivo. “Fui a urologista, nefrologista, clínicos-gerais, e ortopedistas, mas nenhum descobriu o que eu tinha. Fiz exames de próstata, pedra nos rins e cólon irritável. Como todos deram negativo, os médicos me mandaram procurar um psiquiatra.” Quando um ortopedista de Poços de Caldas (MG) finalmente diagnosticou a fibromialgia, há um ano, J. estava com depressão crônica, tomava antiinflamatórios, antidepressivos e relaxante muscular. “Agora faço RPG, caminho e continuo tomando o antidepressivo. Já durmo melhor e me sinto menos cansado. Mas a dor ainda incomoda”.
Vítimas de preconceito
Como os exames feitos em diversos laboratórios não indicavam nada de errado, mas as dores pelo corpo persistiam, parentes e amigos da dona-de-casa Marina Bianconi, 55, passaram a duvidar de suas queixas. “Uma amiga chegou a me dizer que tanto tempo de cama era coisa de artista. Os médicos aconselhavam descanso, mas eu dormia e acordava com mais dor”, lembra. Durante dez anos, Marina se intoxicou de remédios e gastou muito dinheiro com especialistas até a fibromialgia ser diagnosticada, há três anos. Adepta desde então da acupuntura, a dona-de-casa diz que não sente mais tanta dor. “Eu estou mais tranqüila, e o formigamento dos pés e das mãos também diminuiu”.
Para Marina, a dor provocada pela fibromialgia é mais intensa do que dor de dente. “É horrível sentir dor por muito tempo. Um ou dois, tudo bem. Mas não existe a possibilidade de alguém suportar o corpo doendo durante a vida toda”.
Depois de passar dez anos achando que sofria da coluna, a aposentada Dalira dos Santos, 51, sentiu alívio ao ouvir do médico que tinha fibromialgia. “Quando a dor atacava, não saía da cama. Tive problemas no emprego por causa do excesso de licenças médicas. Mas, mesmo sem trabalhar, sentia dores”. “Chegou uma hora em que os patrões não acreditavam porque nenhum médico conseguia decifrar o problema”, lembra. “Nessa época, tive de contar com a ajuda dos meus seis filhos para os serviços de casa”.
Contrariando o conselho médico, Dalira admite que, quando as dores atacavam, ficava quieta, sem se mexer. Hoje, segue à risca as indicações da fisiatra Helena Kaziyama, do HC. “Faço alongamento, relaxamento, acupuntura e hidroterapia. Sou outra mulher. Além da diminuição da intensidade da dor, já consigo dormir tranqüilamente”. Sem saber ao certo as causas da doença, Dalira teme que seja hereditária. “Minha filha mais velha, de 29 anos, já começou a reclamar. Estou achando que ela poderá ter o mesmo problema. É mais sofrimento a caminho”, desabafa.
Clube da Luluzinha
O historiador Eglon de Azevedo, 53, é o único homem presente nas reuniões da associação que reúne portadores de fibromialgia e LER de Tatuí (interior de SP). Não bastassem a dor, o cansaço e as crises de ansiedade, Eglon teve de enfrentar a desinformação sobre a doença. “As pessoas acham que estamos enrolando e não queremos trabalhar”, diz o historiador, que teve que brigar com os planos de saúde. “Eles não pagaram pelos meus tratamentos, alegando que eram alternativos e que só a fisioterapia resolveria. Já gastei R$7 mil com massagens e acupuntura.”
Caminhando contra a dor
No início, a dor forte se limitava aos quadris. Depois, o incômodo atingiu também os braços. Com o passar do tempo, a faxineira Felizbina Mateus, 53, não sabia mais o que era dormir bem. Antes do diagnóstico de fibromialgia, em 98, Bina, como é chamada, achava que as dores eram conseqüência da menopausa ou do excesso de trabalho. “Como não podia ficar em casa, me conformei”. Hoje, Bina ainda sente dores, mas diz que diminuíram graças aos antidepressivos e, sobretudo, às caminhadas diárias. “Faço tudo a pé, evito tomar condução”.
Fibromialgia é confundida com LER
No começo de 99, o reumatologista Jamil Natour, da Unifesp, pôde observar na prática como a fibromialgia é ainda desconhecida. A pedido de uma metalúrgica de Guarulhos (SP), o médico e sua equipe investigaram se os funcionários diagnosticados com LER (Lesão por Esforço Repetitivo) tinham de fato lesões ou inflamações nos músculos e tendões. Entre os 40 metalúrgicos com LER pesquisados 60% tinham, na verdade, fibromialgia. “Isso mostra como os médicos do trabalho ainda não conhecem a doença. Como esses metalúrgicos, muitos trabalhadores que têm fibromialgia recebem o diagnóstico errado e continuam sofrendo porque não são tratados adequadamente”, diz Natour. Enquanto os exercícios repetitivos, a má postura e o uso da força são as principais causas da LER, ainda não se sabe a origem da fibromialgia. A única semelhança entre as duas doenças é a dor. “Mas, na LER, a dor é localizada e, na fibromialgia, difusa”, diz a reumatologista Rita Beltrami. Tendinite (inflamação nos tendões), tenossinovite (inflamação de bainha de tendão) e a lombalgia (dores nas costas) são as lesões mais comuns em casos de LER.
Doença pôs fim à preguiça
A empresária Marilda Bonilha, 54, odiava fazer exercícios até saber que tinha fibromialgia. Hoje, caminha diariamente e faz hidroginástica para combater a dor. A doença foi diagnosticada em 97, mas Marilda sofria desde 87. Como a maioria dos portadores de fibromialgia, ela teve de aprender a conviver com a dor. “Passei dez anos tomando muito antiinflamatório, pulando de um especialista para outro. As dores nas juntas acabavam com meu humor e eu descontava tudo na família. Hoje o relacionamento com parentes e amigos melhorou muito”, conta.